Kid Farofa, o bamba do faroeste

Por Marcus Ramone

Criado em 1965, por Tom K. Ryan, o caubói Kid Farofa (Tumbleweeds, no original) se despediu dos quadrinhos em 2007, quando estrelou sua última tira de jornal, nos Estados Unidos. No Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, o personagem teve uma passagem de sucesso pela editora Artenova, sempre presente na revista Patota ou estrelando suas próprias edições regulares ou especiais.

Até os anos 1990, ainda era possível encontrá-lo na seção de tiras de alguns jornais brasileiros, o que já não garantia a ele o alcance necessário para conquistar novos fãs. Para quem acompanhou a fase áurea de Kid Farofa, restam as boas lembranças. Aos que não conhecem o personagem, a pedida é procurar em sebos ou sites de leilão as edições de bolso da Artenova. Como essa da imagem abaixo, publicada em junho de 1973, que na capa estampa Pockets Artenova 3 – Kid Farofa, o bamba do faroeste, mas na lombada, curiosamente, traz Kid Farofa Almanaque n° 2 – o expediente da revista não registra nenhum dos dois nomes. Essa confusão, que ainda hoje atormenta os que querem completar a coleção, era causada pelos muitos títulos da série de pockets da editora, que incluía Snoopy, Hagar, B.C. e vários outros.

Kid Farofa nº 3 (Artenova, 1973)

Além do parvo personagem-título e seu fiel cavalo Épico, estão presentes na edição o bandoleiro Olho-de-Cobra; o papa-defunto Barros; o impagável bebum Ressaca; a sonhadora Ermengarda, que vive tentando arrastar Kid Farofa para o altar e até o carrega nos braços; os índios Sortudo – na verdade, um azarado por natureza – e Búfalo Bucólico, um brutamontes abobalhado; e muito mais, incluindo os hilários soldados do Forte Ridículo. Todos com seu inconfundível semblante imbecil que faz rir à primeira vista.

Situações comuns nas histórias de faroeste, como tiroteios, assaltos a banco, fugas da cadeia, confrontos com índios e o tédio das ruas desertas e poeirentas das pequenas cidades (neste caso, a minúscula Garganta Seca), ganhavam nas tiras de Kid Farofa contornos cínicos, satíricos e bem amenos, como se o duro e indomável Velho Oeste norte-americano tivesse sido uma grande diversão.

É o que mostra nessa edição a divertida sequência em que o chefe dos índios Poohawk realiza o Seminário das Bárbaras Artes, no qual ensina, dentre outras lições, técnicas de escalpelamento – ou melhor, “retirada à força da epiderme craniana”, expressão correta para quem deseja ser um selvagem civilizado, segundo suas palavras.

Estaria na velha Garganta Seca a origem do politicamente correto?

Artenova, amadores com ótimos personagens

Definitivamente, as histórias em quadrinhos não estavam no métier da Artenova, editora fundada no início dos Anos 60 pelo empresário, escritor e político piauiense Álvaro dos Santos Pacheco. Conhecida por publicar autores importantes como Anthony Burgess, J. R. R. Tolkien, Raymond Chandler, Rubem Fonseca, Clarice Lispector, Carlos Castelo Branco entre outros, a editora passou a publicar vários personagens importantes de quadrinhos a partir de 1971.

Zé do Boné (Andy Capp)

Peanuts foi a primeira vítima da Artenova, com a revista Snoopy & Charlie Brown, publicada em formatinho. Nos anos seguintes foram lançados Hagar, O Mago de Id e Mutt & Jeff, todas em formatinho, e Kid Farofa, B.C., Zé do Boné, Mãi…ê! e Denis, o Pimentinha, todos em edições de bolso. Os Peanuts também tiveram publicações de bolso.

Além de uma montagem absolutamente amadora, que muitas vezes sacrificava alguns quadrinhos, quando os arte-finalistas da editora redesenhavam e completavam partes do desenho, as capas não utilizavam os desenhos originais na maioria das vezes. Eles eram trocados por artes primárias que mais pareciam decalcadas dos personagens, num total desrespeito ao trabalho autoral.

A montagem pífia se destacava nas edições em formatinho e na revista Patota, lançada em 1973 no formato magazine com 68 páginas. A publicação se tornou um grande sucesso de vendas apesar do amadorismo editorial, graças evidentemente à força do seu elenco de personagens. (Ucha)

Revista Patota #1: um elenco de peso com um trabalho editorial mequetrefe.

O Drácula genial de Colan

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The Tomb of Dracula #1. Desenho de Bob Larkin

Em outubro de 1979 a Marvel lançou The Tomb of Dracula, uma excelente revista bimestral em preto e branco e no formato magazine, maior do que as revistas americanas convencionais. Ela sucedeu à revista de mesmo nome que era publicada desde abril de 1972 no formato tradicional americano e em cores, cuja última edição, a de número 70, saiu em agosto de 1979.

As histórias da nova publicação tinham um tratamento mais apurado e o desenhista continuava sendo o fantástico Eugene Colan, ou simplesmente Gene Colan, que também era o principal desenhista da antiga série. A nova publicação teve apenas seis edições, mas foram antológicas.

Gene Colan nasceu em 1º de setembro de 1926 e foi um dos mais criativos e prolíficos desenhistas de quadrinhos dos Estados Unidos. Trabalhou para todas as importantes editoras de quadrinhos americanas, principalmente a Marvel, onde ajudou a criar O Falcão (The Falcon) e Carol Danvers, a heroina que se tornaria a Capitã Marvel. Além de seu personalíssimo Drácula, Colan desenhou personagens icônicos como Homem de Ferro, Namor, Dr. Estranho, Capitão América, Demolidor, Batman e o cultuado Howard the Duck.

Conheça mais sobre as idéias e o trabalho do genial Gene Colan, visitando o seu site oficial.
Visite também a sua página no IMDd (Internet Movie Database) e na Wikipedia.

Vida, morte e fé no sertão

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O traço marcante e graficamente exuberante de Jô Oliveira colocou instantaneamente a trilogia de A Guerra do Reino Divino no patamar de grande clássico dos quadrinhos nacionais, desde que foi publicada pela primeira vez na prestigiada revista italiana AlterLinus #5, de maio de 1975. No Brasil, essas histórias foram reunidas num álbum lançado pela Editora Codecri um ano depois (leia aqui).

O desenho do mestre Jô Oliveira tem inspiração nas gravuras da literatura de cordel, típicas do Nordeste brasileiro e dão à obra um vigor visual que ainda hoje causa grande impacto. Numa época em que se lançam tantas edições especiais de luxo, muitas delas sem importância alguma, esta obra-prima deveria ser relançada com um tratamento gráfico mais refinado e adequado à sua grandeza histórica.

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Já que a história não é colorida, eu me atrevi a colocar cores nos desenhos do mestre Jô Oliveira nestas cinco imagens que ilustram esta postagem. Foi um atrevimento e, ao mesmo tempo, uma diversão.

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Veja aqui algumas páginas desta obra primorosa, e leia o editorial escrito por Ziraldo para a edição brasileira lançada pela Codecri.

O traço selvagem de Joe Kubert

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Tarzan
, de Edgar Rice Burroughs, teve sorte em suas adaptações para os quadrinhos. O icônico personagem quase sempre foi desenhado por artistas talentosos, como Russ Manning, John Celardo, Bob Lubbers e até Gray Morrow, só para citar alguns dos nomes que continuaram a desenvolver a mitológica figura do homem das selvas até a década de 1970. Mas em Tarzan, Joe Kubert1972, quando a National Periodical Publications (atual DC Comics) adquiriu os direitos para publicar as revistas com as aventuras do herói, Tarzan voltou ao patamar de excelência de seus lendários desenhistas iniciais, Hal Foster e Burne Hogarth.

Foi assim: Carmine Infantino, exímio desenhista e então diretor editorial da DC, chama Joe Kubert, outro lendário mestre dos pincéis, para uma reunião. Quando se encontram, Carmine, sorrindo, pergunta: “Joe, o que você acha de fazer Tarzan?”. Quem conta essa história é o próprio Kubert no texto de introdução do livro Tarzan – A Origem do Homem-Macaco e Outras Histórias, lançado pela Devir. E ele explica: “Carmine e eu nos conhecíamos desde que entramos nesse negócio. Se havia alguém que sabia do meu amor por Tarzan de Burroughs, esse alguém era ele”. E isso fica absolutamente claro em todas as histórias desenhadas e escritas pelo artista. Joe Kubert tinha uma verdadeira devoção pelo Homem-Macaco desde a época em que Foster era seu desenhista.

Tarzan, de Burne Hogarth“Naqueles desenhos belissimamente representados, mas enganosamente simples, Tarzan, o Homem-Macaco, tornara-se uma entidade viva. As figuras eram reais e intensas. E a credibilidade dos personagens e cenários transportavam um garoto morando (…) em Nova York para o misterioso mundo verdejante e vibrante da selva africana”, escreve Kubert, concluindo que “a habilidade com que Hal Foster conseguia criar aquela sensação de total realismo e credibilidade era mágica”. (ilustração ao lado)

Ao receber a incumbência de Infantino, Kubert não decepcionou. Autor de histórias repletas de emoções e traços fortes, como Sargento Rock, ou super-heróis que fugiam do padrão da época, como Gavião Negro, Kubert devolveu a Tarzan a grandiosidade do trznlutathpersonagem de Burroughs. Num trabalho de fôlego e de grande respeito pelo autor e pelo personagem, o desenhista releu todos os livros que Burroughs escreveu e estudou o material produzido por Hal Foster e Burne Hogarth nas décadas de 1920 e 30. O resultado é um conjunto de histórias que recriam o mito do herói das selvas como há muito tempo não se via nos quadrinhos. Desde a fidelidade de adaptação dos livros de Burroughs aos seus traços viscerais e modernos, Joe Kubert construiu um modelo épico para a história do Rei das Selvas dentro das histórias em quadrinhos. 

Há alguns anos, a Devir compilou essas aventuras em três álbuns fundamentais para quem ama os quadrinhos: Tarzan – A Origem do Homem-Macaco, Tarzan – A Volta do Rei das Selvas (ambos já esgotados) e Tarzan – O Homem-Leão e Outras Histórias. Eles resgatam um material precioso que já havia sido publicado pela primeira vez no Brasil pela Editora Brasil-América, de Adolfo Aizen, na Coleção Lança de Ouro – revista que publicou mensalmente, de dezembro de 1972 a novembro de 1974. A Ebal reuniu também parte desse material em dois álbuns de luxo, num formato um pouco maior do que os da Devir (abaixo à direita o primeiro: A Origem de Tarzan).

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Já, o primeiro álbum da Devir (acima à esquerda) traz a aventura Terra de Gigantes, na qual Kubert recria a história a partir dos desenhos de Burne Hogarth, resultando num trabalho atraente para estudiosos dos quadrinhos. Há também as quatro histórias que compõem a adaptação do primeiro livro de Burroughs sobre o personagem – Tarzan dos Macacos – além de outras três aventuras curtas. Lançado originalmente pela Dark Horse nos Estados Unidos, esses três álbuns são o resultado concreto da grande homenagem que Joe Kubert, respeitosamente, fez ao criador e seu herói mais famoso.

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As imagens acima foram extraídas do primeiro volume, lançado pela Devir.

Abaixo, duas imagens extraídas do álbum A Origem de Tarzan, lançado pela Ebal.origtrzn-lancnt
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Livro traz de volta O Judoka pelo seu maior artista!

O resgate das histórias geniais criadas e desenhadas por FHAF, perdidas desde os anos 70, está no Catarse.

Os fãs do melhor quadrinho nacional e aqueles que acham importante o resgate dos clássicos da HQ nacional podem comemorar! Está no Catarse o livro O Judoka, por FHAF, que traz de volta a arte excepcional do roteirista e desenhista Floriano Hermeto de Almeida Filho para O Judoka, personagem publicado na revista de mesmo nome lançada pela Ebal em 1969.

No livro de 180 páginas, serão republicadas as cinco histórias clássicas de O Judoka desenhadas por FHAF, que foram lançadas originalmente entre maio de 1970 e abril de 1972. Além delas, a obra virá repleta de extras:
• Entrevista com Floriano Hermeto;
• Um panorama histórico e cultural da época;
• 15 páginas inéditas desenhadas por FHAF: seis páginas com uma nova aventura do Judoka que jamais foi publicada; além de duas páginas de Zorro (The Lone Ranger) e sete páginas de uma aventura com cangaceiros que estava sendo produzida para a Ebal.

Para sair do papel, esta obra histórica deve ser apoiada no Catarse a partir deste link: https://www.catarse.me/judokaporfhaf

Um pouco de História

Em maio de 1970 foi lançada a sétima aventura em quadrinhos de um personagem que marcou época e a infância de milhares de fãs dos quadrinhos nacionais: chegava às bancas a aventura “A Caçada”, de O Judoka, Um Herói Brasileiro, personagem publicado mensalmente pela revista de mesmo nome, lançada pela Editora Brasil-América (Ebal). Era a primeira história escrita e desenhada por um desenhista desconhecido até então: Floriano Hermeto de Almeida Filho, que assinava como FHAF.

Ao imprimir ao personagem agilidade cinematográfica e enquadramentos inusitados dignos dos grandes mestres do desenho, seu trabalho causou frisson no mercado nacional e chamou a atenção da crítica especializada da época e de estudiosos dos Quadrinhos como Álvaro de Moya e Moacy Cirne.

Em resenha publicada na cultuada Revista de Cultura Vozes, Cirne considerou a história de estréia de FHAF em O Judoka como a Melhor História do Ano. E olha que Floriano Hermeto concorreu com gigantes dos quadrinhos, como Mauricio de Sousa, que ficou com o 2º lugar com a história O Astronauta e o Mundo do Sonho, Esteban Maroto, em 3º lugar, com Cinco Por Infinitus – A Formação da Equipe, e Jack Kirby e Stan Lee, em 7º lugar com O Planeta Vivo, uma história do Thor.

Álvaro de Moya levou os desenhos de FHAF para uma exposição no badalado Congresso Internacional de Quadrinhos de Lucca, na Itália, em 1971.

O fato é que, nos seis números anteriores, dois ótimos desenhistas se revezaram para dar forma ao personagem: Eduardo Baron e Mario Lima. Mas foi Floriano Hermeto que realizou mudanças importantes no personagem, dando consistência ao roteiro, além de fazer uma brilhante releitura da estrutura visual de suas histórias. Com o seu traço arrojado e inovador, que lembrava o estilo moderno de desenhistas internacionais como Jim Steranko, Guido Crepax e Esteban Maroto, O Judoka alcançou um patamar jamais imaginado pela Ebal.

A revista do Judoka foi um sucesso de vendas e o personagem chegou às telas do cinema num filme estrelado pelo modelo Pedro Aguinaga e a atriz Elizângela. Publicada até julho de 1973 muitos outros artistas assumiram a responsabilidade de traçar novas aventuras. Foram 46 histórias ao todo e quase uma dezena de desenhistas. Mas ninguém alcançou a qualidade gráfica que FHAF deu ao personagem em suas cinco histórias.

Engenheiro Civil Sanitarista, Floriano trabalhava na construção do Metrô carioca nessa época. Desenhou por prazer. Queria fazer quadrinhos no Brasil, mas um emprego que lhe dava segurança econômica falou mais alto. Seu estilo entrou para a História dos quadrinhos no Brasil e precisa ser resgatado. O livro O Judoka, por FHAF, que está em campanha no Catarse, site de financiamento coletivo, faz justiça a esse desenhista e roteirista ímpar. Colabore com o projeto e garanta já o seu exemplar histórico visitando esta página no Catarse:  www.catarse.me/judokaporfhaf

Pelé, a Pérola Negra

Em primeiro de agosto de 1970 começava a ser vendida no México a revista Estrellas Del Deporte, número 74, da Editorial Novaro, com uma história em quadrinhos sobre a vida do nosso Rei Pelé, o atleta do século 20. Intitulada de Pelé, La Perla Negra, ela mostra a história do Rei do Futebol desde seu nascimento até o dia em que foi Campeão Mundial de Futebol com a Seleção Brasileira pela primeira vez, na Copa do Mundo de 1958, na Suécia.

Essa revista foi lançada logo depois da Copa do Mundo de 1970 para aproveitar a euforia causada pela conquista do Tricampeonato Mundial de Futebol pela Seleção Brasileira, e pela verdadeira devoção que os mexicanos tinham por Pelé, um dos grande heróis daquela Copa e da conquista definitiva da Taça Jules Rimet pela Seleção do Brasil.

Não há informação alguma sobre esse lançamento, uma raridade hoje em dia. Na revista não há crédito, nem do roteirista, nem do desenhista, e não dá para saber se é uma história desenhada no México. Há apenas a assinatura “Moyo” na primeira página da história (na parte inferior à direita, clique na imagem abaixo para ampliar e ver melhor).

Segundo o expediente da publicação essa história tem data de copyright de 1966, o que indica que, possivelmente, ela foi produzida pouco antes da Copa de 1966 e lançada nesse ano fatítido provavelmente para aproveitar a fama da Seleção Brasileira e do brilhante jogador de futebol. Pois é… 1966 não foi um bom ano para a Seleção Brasileira. Depois de conquistar dois campeonatos mundiais seguidos (1958 e 1962), a Seleção chegou à Inglaterra como a franca favorita, mas acabou eliminada logo na primeira fase, perdendo para a Hungria e para Portugal pelo mesmo placar: 3 x 1. No dia 19 de junho de 1966 Brasil era definitivamente eliminado da Copa por Portugal.

  

Mas, voltando à revista em quadrinhos que conta a vida de Pelé, nas 32 páginas o leitor toma contato com o início humilde de Edson Arantes em Três Corações e a mudança de sua família para Bauru. A história conta também a criação do Sete de Setembro, time que passou a se chamar Ameriquinha e disputou o campeonato juvenil em Bauru. Mostra a chegada do jogador à equipe do Bauru e, mais tarde, sua contratação pelo Santos.

Enfim, Pelé é convocado para a Seleção Brasileira de Futebol para disputar a Copa Roca (veja a página 23 acima, à direita) e depois é também selecionado para disputar a Copa do Mundo de 1958, mesmo machucado. Na história, aparecem a mãe de Pelé, Dona Celeste, e seu pai, “seu” Dondinho, além de Valdemar de Brito (ex-jogador e técnico que levou Pelé para o Santos), Luís Alonso Pérez (treinador do Santos) e Vicente Feola (veja no detalhe abaixo). Tudo bem que, em alguns quadrinhos, Pelé parece mais velho do que deveria. Mas, de qualquer forma essa história em quadrinhos foi uma bela homenagem ao Atléta do Século 20.

Pena que no “País do Futebol”, o futebol nunca foi bem sucedido e bem explorado nas histórias em quadrinhos nacionais, com raras tentativas e pouquíssimos casos de relativo sucesso.

Veja mais uma página da história de Pelé em quadrinhos clicando aqui.

Gastão, o vomitador

Tem um personagem do Jaguar que continua atualíssimo! Gastão, o Vomitador, criação inesquecível do cartunista que teve apenas nove tiras publicadas no Pasquim. Não é que os leitores reclamaram do personagem, que era um tanto quanto nojento. Afinal, não se via personagens de histórias em quadrinhos vomitando nas revistas. O problema é que Jaguar não gostava de desenhar histórias em quadrinhos, não tinha saco, como ele mesmo disse numa entrevista. “Eu achava um porre desenhar história em quadrinhos. Se você bolar um cartum, ele em si próprio se encerra, pronto e acabou! Os quadrinhos pedem aquela repetição, repetição, repetição a cada quadro!” O negócio dele era cartum. Mas Gastão, o Vomitador foi tão marcante que transformou a onomatopéia BLUAHH num clássico!

O Judoka, de Mario Lima

Mario Lima foi o segundo desenhista das histórias de O Judoka, personagem criado por Pedro Anísio para a Ebal, cuja primeira história – O Shiram Mágico – teve o traço simples e inconfundível de Eduardo Baron.

O Judoka, desenho de Mário Lima

Mario também foi o desenhista que produziu mais histórias para o famoso super-herói brasileiro: 12 no total. Sua estreia aconteceu na aventura A Quadrilha de Mulheres, publicada logo na segunda edição com o personagem brasileiro, O Judoka #8. Em seguida, ele desenhou as histórias publicadas nos números 10, 11, 12, 13, 15, 18, 19, 21, 22, 25 e 51.

A imagem acima, desenhada por Mario Lima, é um detalhe da capa da revista O Judoka #10, publicada em janeiro de 1970. Abaixo, mais dois desenhos dele: a capa de O Judoka #18 e uma Galeria dos Heróis, com o casal de Judokas, publicada na revista O Judoka #52.

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O Reizinho e o Embaixador: irmãos de tinta

Esta imagem pode ser usada como papel de parede em seu computador. Clique nela e salve.

O simpático Reizinho (The Little King), criação imortal de Otto Soglow.

Criado por Otto Soglow, o simpático The Little King começou a ser publicado em 1931 na conceituada revista The New Yorker. Muito elegante e sofisticado, o traço de Soglow e seu Reizinho – como ficou conhecido no Brasil – logo chamou a atenção do magnata da imprensa americana,  William Randolph Hearst, que fez de tudo para ter o personagem em seus jornais, sob a tutela de sua distribuidora de conteúdo, a King Features Syndicate.

The Little King, by SoglowPorém, Soglow tinha um contrato de exclusividade com a revista para a publicação de seu personagem. Mas esse “pequeno detalhe” não impediu Hearst de ter o personagem… ou, pelo menos, ter um muito similar, afinal, quando esse chefão da imprensa americana queria uma coisa, ele sempre conseguia (ou quase sempre).

Como resolver o impasse? Soglow teve a ideia de criar um outro personagem com as mesmas características e estilo do Reizinho para que Hearst pudesse publicá-lo. Assim, em 1933, surgiu The Ambassador, que é praticamente um plágio de The Little King.

The Ambassador, tira publicada em 11 de fevereiro de 1934
The Ambassador 
foi publicado nos jornais de Hearst e distribuído pela sua empresa até o final do contrato de Soglow com a The New Yorker. Sua última aparição aconteceu no domingo, dia 2 de setembro de 1934, numa tira dominical na qual ele contracena com a mulher do Reizinho, estabelecendo um divertido crossover. Nela,o Embaixador recebe a Rainha, que lhe diz: “O rei está chegando em casa. Vamos encontrá-lo!”. No caminho há uma forte ventania e a coroa do Reizinho acaba caindo, ironicamente, na cabeça do embaixador. Essa foi uma sacada muito divertida de Soglow, fazendo uma ponte para o domingo seguinte, dia 9, quando The Little King finalmente estreou nas páginas dominicais dos jornais, distribuído pela King Features Sindicate.

The Ambassador se despede dos jornais em 2 de setembro de 1934Seu sucesso foi tão grande que, entre 1933 e 1934, O Reizinho estrelou uma série de desenhos animados criada pela Van Beuren Studios. Na década de 1950, The Little King foi publicado nos Estados Unidos, também em revistas em quadrinhos pela Dell Comics (como a historieta abaixo, de 1955). E em 1960, o personagem estreava numa revista mensal publicada pela Rio Gráfica Editora (RGE).

As histórias do personagem foram produzidas ininterruptamente até a morte de seu criador, em 1975.

Cartoon Monarch - Otto Soglow & The Little KingEm 2012, a IDW Publishing resgatou o personagem num livro de 432 páginas muito bem editado, chamado Cartoon Monarch – Otto Soglow and the Little King e pode ser encomendado no site da Amazon. Finalmente o trabalho do artista que inspirou uma geração de desenhistas ganha sua retrospectiva e poderá ser apresentado também às novas gerações. A IDW é a mesma editora responsável pela excelente coleção The Complete Chester Gould’s Dick Tracy, que publica desde 2006 todas as tiras de Dick Tracy desenhadas pelo seu criador, Chester Gould.

Para assistir a um dos desenhos clássicos do Reizinho, CLIQUE AQUI.

 

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Todas as imagens que ilustram este texto podem ser ampliadas em boa resolução.

Um super-herói brasileiro

A primeira aparição do herói brasileiro O Judoka aconteceu na revista de mesmo nome, lançada pela Ebal em outubro de 1969. Na realidade, era a sétima edição dessa publicação, que nas primeiras seis edições teve como personagem principal, Judô Master, um herói americano criado por Joe Gill e Frank McLaughlin para a Charlton Comics.

A seguir transcrevo o texto de apresentação do personagem brasileiro, que foi publicado na página 2 da revista:

“Quando resolvemos lançar um novo personagem, pedimos ajuda ao Pedro Anísio. Para quem não sabe, o Pedro já trabalhava conosco, desde longínquas e priscas eras – vem desde os tempos do Suplemento Juvenil, quando, ainda ajudante de tipógrafo, escrevia reportagens, contos e crônicas. depois, passou-se para as Rádios Tupi e Nacional, onde, durante anos a fio escreveu novelas. Ele, Ghiaroni O Judoka, por Eduardo Barone Hélio do Soveral foram, por mais de trinta anos, criadores de milhares de novelas radiofônicas. E os três fazem parte daquela geração do Suplemento Juvenil. Pois bem, foi ao Pedro Anísio, autor de muitas histórias escritas especialmente para a Ebal (Pedro Álvares Cabral, A Independência do Brasil, A Libertação dos Escravos, A História do Petróleo – uma publicada, outras por publicar), foi a ele que pedimos a “bolação” dos textos e situações do nosso novo herói – O Judoka. E o Pedro, como sempre, desincumbiu-se maravilhosamente. O homem é, mesmo, um dos grandes ficcionistas desta terra.

Os desenhos deste primeiro número foram feitos pelo Eduardo Baron, jovem artista de 22 anos, do nosso estafe de desenhistas, que se desincumbiu a contento. Vejam só que traço e que soluções ótimas ele teve. O Eduardo vai longe.”

A capa dessa revista ficou a cargo do talentoso Monteiro Filho, grande desenhista que trabalhava com Adolfo Aizen (dono da Ebal) desde a época do Suplemento Juvenil.

Abaixo, uma montagem a cores com o desenho do Eduardo Baron que pode até ser usado como papel de parede em seu computador. Todos os desenhos que ilustram este texto, podem ser baixados em ótima resolução.

O deus do trovão: um super-herói Shell


O Poderoso Thor
foi um dos cinco Super-heróis Shell lançados em 1967 pela Ebal, e foi o único que estreou sozinho numa revista chamada de Álbum Gigante (acima o número promocional). Os outros quatro foram Capitão América e Homem de Ferro, que dividiam suas aventuras na revista O Capitão Z, e O Incrível Hulk e Príncipe Submarino, que chegaram na revista Superxis
Mas Thor tinha algo de nobre. Afinal, é um Deus vindo de Asgard. E era desenhado pelo fabuloso Jack Kirby.

O texto de apresentação do personagem foi publicado tanto na edição promocional, número 0, quanto no primeiro número da revista, lançado pela Ebal em outubro de 1967, e começava assim:

Quando as nuvens tempestuosas se fizerem ouvir através de estrondosos trovões, prestem atenção! Quando raios riscarem os céus, com seu rastro luminoso, observem cuidadosamente! O senhor desses elementos pode estar por perto, com seu magnífico martelo Uru, pronto a servir à causa do Bem! Saúdem o Príncipe dos Raios, deus do Trovão… o Poderoso Thor! Ele é filho de Odin e habita em Asgard, moradia dos deuses nórdicos, e, para lá chegar, tem que passar pela imponente Ponte do Arco-Íris!

Os Super-heróis Shell foram lançados no Brasil como parte de uma supercampanha publicitária patrocinada pela multinacional de petróleo, que consistia na distribuição das revistas promocionais (todas numeradas de ‘zero’) nos postos Shell. A campanha fez um enorme sucesso na época, e colocou os cinco personagens da Marvel “na onda” (como dizia a gíria da época), ajudando a promover também os desenhos animados de Thor, Capitão América, Homem de Ferro, Hulk e Namor na televisão.
 
Essas animações são um caso à parte. Totalmente baseadas nos quadrinhos, elas eram quase sem movimentos, praticamente uma sequência de desenhos que pareciam ter sido retirados das revistas. O que dava um ar tosco, mas que se tornou cult justamente por manter o mesmo traço dos grandes desenhistas que ilustravam os heróis.

Os desenhos animados também tinham uma peculiaridade divertida: a abertura de cada série apresentava o super-herói com sua música exclusiva, que era uma espécie de hino heróico. As músicas desses “hinos” foram compostas por Jack Urbont e a versão da letra foi adaptada para o português por Abdon Torres, que foi diretor da Globo e integrou a primeira equipe da emissora, responsável pela sua implantação.

Essas músicas também ficaram famosas e suas letras foram publicadas nas primeiras edições das revistas da Ebal. A do Thor era assim:

Onde o arco-íris é ponte,
Onde vivem os imortais,
Do trovão é deus guarda-mor
O barra-limpa,
O grande Thor

Sobre a capa da edição número 0 de Álbum Gigante, com a estréia de Thor, há uma curiosidade muito interessante. O desenho que ilustra essa capa nunca foi publicado numa história do Thor! Aliás, nem o personagem que você vê é o Deus do Trovão! Na verdade, aquele é o Demolidor disfarçado de Thor! Parece maluquice, mas não é. A história se chama “Em luta com o Deus do Trovão”, foi desenhada pelo genial Gene Colan com arte-final de J. Tartaglione, e foi publicada no Brasil na página 7 da revista O Demolidor #29, de agosto/setembro de 1971.

E tem mais um detalhe importante nesse desenho: como Thor é destro, o Demolidor se esqueceu de segurar o martelo Mjölnir com a mão direita, confusão corrigida logo na página seguinte. Pois é… quem diria: o Demolidor foi o super-herói que inaugurou a revista do Thor no Brasil. Coisas da Ebal.

Nos Estados Unidos, Thor estreou em agosto de 1962 na revista Journey into Mystery #83 (acima) e a capa foi desenhada por Jack Kirby e Joe Sinnott.

A primeira HQ de aventuras do mundo é brasileira!


Um livro importantíssimo para o resgate da obra de Angelo Agostini na História da cultura brasileira é As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora, de autoria do pesquisador Athos Eichler Cardoso, cuja primeira edição foi lançada em 2002 dentro da série Edições do Senado Federal. O livro recebeu o Troféu HQ Mix na categoria Valorização dos Quadrinhos e, justamente por isso, o livro, que estava esgotado, teve uma segunda edição lançada em 2005.

O álbum teve um esmerado trabalho de restauração digital para reproduzir com a melhor qualidade possível, os capítulos das primeiras histórias em quadrinhos brasileiras, criadas pelo mestre Agostini. São elas: As Aventuras de Nhô-Quim, ou Impressões de uma Viagem à Corte, (abaixo) publicados em página dupla na Vida Fluminense, e As Aventuras do Zé Caipora, publicadas na Revista Illustrada, em Don Quixote e, numa última fase, em O Malho.
08-nhoquim Dois momentos do atrapalhado caipira Nhô-Quim

Folhear este álbum impresso em papel couchê e no formato A4 é voltar no tempo e descobrir um verdadeiro tesouro artístico, criativo e absolutamente pioneiro. É compreender melhor como era o Brasil, sua gente e seus costumes em fins do século 19. A recuperação desses documentos, portanto, é essencial para manter um registro iconográfico fiel desse período.

Publicada a partir de 1869, As Aventuras de Nhô-Quim é considerada a primeira história em quadrinhos brasileira e Agostini foi o quinto artista do mundo a publicar uma hq. A primazia de ser o pioneiro coube a um caricaturista suíço, Rodolphe Topffer, que publicou em 1827 a história Monsieux Vieux Bois. Hoje o autor é considerado o pai dos quadrinhos, apesar de seus traços serem bem primários, quase infantis (como se pode ver clicando no link de seu nome). A história Monsieur Reac, criada em 1948 pelo fotógrafo e desenhista francês Nadar, pseudônimo de Gaspard-Félix Tournachon, é considerada a segunda hq. A dupla endiabrada Max und Moritz, famosa criação do pintor e caricaturista alemão Wilhelm Busch – que inspirou a criação de Os Sobrinhos do Capitão, de Rudolph Dirks –, chegou em 1865 e, dois anos depois Ally Sloper começaria a ser publicada regularmente na revista britânica Judy com desenhos de Charles H. Ross – que também escrevia as histórias – e a elegante arte-final de sua mulher, a cartunista francesa Marie Duval, pseudônimo de Emilie de Tessier.

Uma enorme diferença de 67 anos separa a história em quadrinhos de Topffer da criação do desenhista norte-americano Richard F. Outcault, The Yellow Kid, que era alardeado aos quatro ventos como sendo o primeiro personagem dos quadrinhos (“comics” dos Estados Unidos). Como se pode ver, não é! Yellow Kid só começou a ser publicado em 1894. Até o nosso Zé Caipora, de Angelo Agostini (páginas abaixo), estreou 11 anos antes do garoto amarelo lançado no New York World, de Joseph Pulitzer!

Também não é dos Estados Unidos a primazia de ter lançado a primeira história em quadrinhos de aventuras. Tarzan e Buck Rogers, que os americanos consideram como os primeiros ‘comics’ desse gênero, foram publicados pela primeira vez em janeiro de 1929. Ou seja, 46 anos depois que Angelo Agostini passou a publicar As Aventuras de Zé Caipora.

Quando lançou o primeiro capítulo do seu Zé Caipora, em 27 de janeiro de 1883, Agostini já era um quarentão famoso, dono da principal publicação ilustrada da Corte – a Revista Illustrada – e de um traço refinado. Zé Caipora começou cômico, mas o personagem ganhou nova dimensão criativa e gráfica logo nas primeiras páginas, quando embarca numa aventura pelas desconhecidas selvas brasileiras. A arte seqüencial de Agostini é dinâmica, ágil, elegante e, como linguagem moderna de quadrinhos, antecede em muito tempo seus congêneres Tarzan e Príncipe Valente, ambos de Hal Foster; e Flash Gordon e Jim das Selvas, de Alex Raymond.

Como ressalta Athos Cardoso em seu livro, “cabe a Angelo Agostini o título de avô das tiras de aventura, como precursor da temática e a Zé Caipora, o de primeiro herói brasileiro e universal do gênero”. Realmente, As Aventuras de Zé Caipora pode ser considerada, sem sombra de dúvidas, a primeira história em quadrinhos de aventura do mundo. Que nos desculpe Hal Foster.

Clique nas imagens para ampliá-las em ótima resolução e ver os detalhes do traço de Agostini.

Uma imersão afetiva e social num ambiente inóspito

Por Rita Braga

Um dos fundamentos da antropologia é manter o olhar ativo como um pêndulo entre o exótico e o familiar. Assim também, literatura e arte, de modo geral, têm suas raízes entre o subjetivo e o universal. Os quadrinhos de A Narradora das Neves – Uma Aventura no País Inuit (La Conteuse des Glaces – Une Aventure en Pays Inuit) brinda o público com uma experiência mais do que agradável.

Os autores, os roteiristas franceses Caroline Roque e Bertrand Escaich – que assinam suas obras sob o pseudônimo de Béka –, já foram premiados por outros trabalhos com o mesmo cunho de imersão cultural, e também lançaram O Apanhador de Nuvens – Uma Aventura no País Dogon (Le Crochet à Nuages – Une Aventure au Pays Dogon) e A Crianças da Sombra – Uma Aventura no País Miao (Les Enfants de l’Ombre – Une Aventure en Pays Miao), todos lançados no Brasil pela Editora Nemo.

Como mais um exemplo da complexidade desse universo tantas vezes subestimado por educadores e leitores, A Narradora das Neves pode desdobrar-se em inúmeras leituras que confrontam culturas em várias instâncias.

No contexto brasileiro é possível que o primeiro estranhamento venha a partir do termo “Inuit”. Entre nós, no uso relativamente cotidiano ou mesmo no senso comum, ainda vigora a palavra “esquimó” para distinguir esse que é um dos povos aborígenes da região do Canadá, nas proximidades do Alasca.

Além do cuidadoso desenho do francês Marko (pseudônimo de Marc Armspach) que já nos convida a uma viagem à parte, na qual as nuances e cores conduzem o olhar sensível pela paisagem, a narrativa em si é uma imersão em outro ethos, outra organização política, afetiva e social. Vale lembrar que a história se passa num dos ambientes mais inóspitos do planeta e ao ver como as personagens se resolvem a cada passo ou palavra, o leitor tem alguns flashes de como a tecnologia, as regras sociais e até a percepção dos eventos mais triviais assumem singularidade.
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O enredo é simples e singelo. Após a experiência de ouvir um viajante que trazia as histórias de outros clãs, a jovem Buniq desafia seu avô – o velho Unioq que naquele momento se preparava para a morte – a acompanhá-la em uma última aventura; ela também quer ser uma contadora de histórias, mas para isso precisará provar que já pode ser responsável pela transmissão dos saberes, dos acontecimentos e símbolos que marcam essas comunidades tão distantes. Na leitura atenta descobrimos temas existenciais sob a perspectiva dentro daquele grupo: como nascer, como crescer, o que é se apaixonar e até o mistério de acreditar em algo ou de simplesmente reconhecer quais são os verdadeiros limites da vida naquele mundo de gelo.

Se é preciso apurar o olhar para enxergar a diversidade de tons e texturas da neve, o livro de Béka e Marko também nos oferece um ponto pouco conhecido de referência cultural que nos orienta e localiza no mundo.

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Caroline Roque nasceu em 1975 em Perpinhã (em francês Perpignan e em catalão Perpinyà), região ao Sul da França que recebeu a distinção de Capital da Cultura Catalã em 2008.  Bertrand Escaich nasceu em 1973 em Saint-Girons, região também ao Sul da França. Ele já escrevia roteiros para quadrinhos quando Caroline venceu um concurso de arte em Toulouse com um de seus romances. Ela, que fazia doutorado em Biologia, abandonou a área para se dedicar exclusivamente à sua verdadeira paixão. Caroline e Bertrand (ou Bertrand e Caroline = Béka) criaram juntos várias séries e já ultrapassaram um milhão de exemplares vendidos.

Marko nasceu em 1969 em Bordeaux e é um desenhista premiado em vários salões de artes e festivais de banda desenhada (Histórias em Quadrinhos) na Europa.

Rita Braga é graduada em Letras pela USP, pós-graduada em Sociopsicologia pela Fesp-SP e especializada em Jornalismo Literário pela ABJL. Com base em sua longa experiência no Núcleo Educativo do Museu da Língua Portuguesa e em outros espaços culturais, atualmente desenvolve uma pesquisa sobre Ações Educativas Sobre Língua Portuguesa na Educação Não Formal. Mantém o blog Notícias da Gaveta.

Liniers: “Desenhar é estar sozinho entre quatro paredes”


Por Verônica Couto

Imagine um personagem que fosse um artista tal, que, cada vez que tenta falar, só consegue se exprimir por meio de música. E que a música que ele toca são desenhos. Uma equivalência assim de meios poéticos atravessa os diferentes trabalhos de Liniers, desenhista argentino que assina há 13 anos as tiras diárias Macanudo. Seus personagens são as pessoas e as coisas que passam pelas cidades. Flutuam, fazem ou não fazem graça, contam uma história ou não contam nada, têm ou não um nome, muitas vezes são ternos, mas também ácidos, patéticos, críticos. Em todos, um forte sentido de utopia, de ritmo e de experimentação. Na opinião de Liniers, o mundo das hqs está finalmente aberto. Não há mais limite para os desenhos. “Pode-se fazer tudo em hq”, diz.

“Procuro experimentar registros diferentes de humor. É um tipo de humor nem sempre terno, às vezes humor-negro, auto-referencial. De modo que o leitor nunca saiba exatamente para onde vai a idéia”, contou. “No humor, na arte, a surpresa é uma qualidade fundamental para algo interessante. E a maneira de manter a surpresa viva é não ter um modelo de humor.” Isso significa, afirma, respeitar inclusive as tiras que ele mesmo não chega a compreender. “Não entendo, mas é linda, pronto.”

O argentino Ricardo Liniers Siri publica Macanudo desde 2002 no jornal La Nación, na Argentina. É músico, pintor, escritor. Começou a carreira produzindo fanzines, até estrear a tira semanal Bonjour em setembro de 1999, no Página/12, jornal de esquerda editado em Buenos Aires. “Era a época dos experimentos, de atrair a atenção com idéias muito extremas, do humor-negro, do grotesco, violento e terno – queria descobrir como se consegue esse equilíbrio.”

Para ele, um mestre em equilíbrios sutis é Charles Chaplin, autor do clássico Tempos Modernos, filme que vemos o desenhista assistir em uma cena do documentário Liniers, El Trazo Simple de las Cosas (Liniers, o Traço Simples das Coisas), de Franca González. “Chaplin te põe em uma encruzilhada. Você ri, chora, não sabe o que faz. Essa sensação me interessa e me intriga. Se posso desenvolver um humor que tenha uma contracorrente de tristeza, gosto muito.”
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Liniers acredita que as pessoas não compreendem alguns de seus desenhos, porque estão conformadas a um modo determinado de perceber a arte e à expectativa de que as histórias precisam de ponto final, ou as imagens, de interpretações lógicas. “Às vezes, não entendem por que estão buscando algo que não está lá”, diz ele no filme de Franca. “Estamos acostumados a olhar pintura de uma maneira, a escutar música de uma maneira. [Na tirinha], os leitores esperam que haja sempre um chiste. Mas vão se acostumando.”

Natural como um idioma
Na palestra de abertura da exposição no Rio de Janeiro (em 2012), o artista explicou à platéia a importância de desenhar constantemente. “Tem que ficar natural, como uma linguagem que se inventa, como quem dirige um carro. A arte precisa ser natural como um idioma.” Por isso, não existe para ele a possibilidade de não desenhar. “Não há bloqueio criativo. Há histórias péssimas, que se morre de vergonha de mandar para o jornal, e se torce para o dia passar rápido.” Lembra que, sem querer, chegou a enviar três vezes a mesma tira à Redação do La Nación. Não a mesma tira. Na verdade, a mesma idéia, três vezes, sem se lembrar das anteriores: uma cena dos Duendes, comentando: “que buena onda…”
Para quem estuda arte, ensina o desenhista, a primeira providência para ir adiante é superar o medo de errar. E aprender as regras, para desobedecê-las. “Há que se conhecer a maior quantidade de regras, para saber quais se quer romper.”

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Quino, maior influência

Em entrevista à jornalista Verônica Couto, Liniers falou de suas influências de outros artistas, inclusive do cinema, como Woddy Allen e Monty Python. Mas ele destaca, em primeiro lugar, o argentino Quino, que completou 80 anos em 17 de julho. “Na Argentina, aprendemos a ler lendo Mafalda”. Depois, entre muitos, os livros de Tintim, Asterix importados, e o El Eternauta, clássico portenho que conta a história de uma invasão extraterrestre em Buenos Aires, de Héctor Germán Oesterheld, que acabou morto pela ditadura argentina, desaparecido em 1977. Entre os artistas brasileiros ele destacou a impressão que lhe causou a quebra de convenções do trabalho do desenhista Fábio Zimbres. “A liberdade do Fábio era tão extrema. Creio que os Pinguins vieram daí.”

Na opinião de Liniers, não há mais diferença entre hq e literatura. “Para mim, não faz diferença. Maus é igual a Tom Sawyer”, diz, numa referência à hq premiada de Art Spiegelman e ao clássico de Mark Twain. E o momento, acredita, é ideal para fortalecer o movimento de valorização dos quadrinhos. A começar por chamá-los de outro modo. “O problema que temos em alguns países é que a denominação já é um diminutivo: historieta, na Argentina, quadrinhos no Brasil. Na França, olha a diferença: bande dessinée. Mostra mais seriedade. Precisamos acabar com esse complexo de inferioridade da hq.”

Apesar disso, Liniers avalia que nos últimos 20 ou 30 anos diminuiu o preconceito e há cada vez menos quem pense que os quadrinhos precisam ser exclusivamente de humor, aventura, super-herói. “Desde a obra Maus e dos trabalhos de Robert Crumb, pode-se fazer o que quiser. Finalmente, está tudo aberto. Nos anos 1950, ninguém ia pensar em fazer um livro de hq sobre Auschwitz; nos anos 1980, Spiegelman ganhou um Pulitzer. É um movimento dos artistas, das editoras e dos leitores.”

A naturalidade de transpor tudo para tiras ou desenhos levou o autor de Macanudo a tentar outras possibilidades. Numa inovação jornalística, desenvolveu uma série de entrevistas desenhadas, feitas para o La Nación. “Nunca havia visto isso. Posso fazer, tenho que fazer. Então pedi que pudesse entrevistar pessoas que eu admirasse.” Na lista dos entrevistados, o primeiro foi o músico argentino Andrés Calamaro. “Gravo uma entrevista de uma hora. Então preciso degravar e fazer a história com o cerne, o fundamental do que foi dito.”

Música desenhada
Liniers também se apresenta em shows desenhando ao vivo enquanto os músicos tocam no palco. Com o amigo Kevin Johansen e sua banda The Nada, começou ilustrando as canções escondido da platéia, em computador que projetava as imagens. Mas logo passou a trabalhar direto no papel – como é a sua preferência – e, finalmente, no próprio palco. “Eu era patologicamente tímido. No curso secundário, tinha muita dificuldade com as garotas. Ficava pensando, se mal consigo falar, como vou tirar a roupa? Mas, fazendo os desenhos nos shows, já começava a cair a timidez e ascender a megalomania”, brinca. No fim da apresentação, faz gaivotas de papel com os desenhos e as lança para o público. “Como todos os desenhistas, gosto muito de música. Desenhar é estar sozinho entre quatro paredes, precisa de um som. Senão, eu ia me transformar em um monstro.” Ele também toca piano e violão.


Macanudo universal
Liniers pinta com acrílico, que seca rapidamente, usa lápis, nanquim e aquarela nos desenhos. “A pintura a óleo requer muita paciência, demora muito. Tenho a maior admiração por quem faz animação e trabalha em cima daquela idéia durante três anos. Eu não consigo. Preciso que os projetos saiam rápido.”

Para marcar o surgimento da sua Editorial Común, Liniers teve uma idéia muito louca: resolveu desenhar à mão as 5 mil capas do sexto número da antologia de Macanudo. “Eu me senti como Chaplin em Tempos Modernos. No 600º exemplar, ainda pensava: ‘que gênio de vanguarda eu sou’. No 3.000º, ‘não agüento mais, seu idiota’.”

Relação psicótica
Liniers – pseudônimo de Ricardo Siri – nasceu em 1973 em Buenos Aires, filho de um advogado que teve várias atividades, inclusive uma fábrica de pantufas. “Aos 18 anos, fui distribuidor de pantufas em shopping center. Isso não era muito bom para impressionar as garotas. ‘O que você faz? Distribuo pantufas.’ Começou a desenhar no colégio. “Era muito ruim no futebol. Um desses párias, que ficava com só dois ou três amigos, e podia desenhar, enquanto fingia estudar”, lembra. Concluiu o curso de Publicidade, mas não se preocupou em tirar o diploma.


Agora já perdeu a conta de quantos personagens criou. Os Pingüins, Os Duendes (que, na tira do dia da aprovação do casamento igualitário, saíram do armário e foram ao Congresso argentino), o Homem Misterioso, a irresistível dupla Enriqueta e Fellini, Olga, o Coelho, o senhor que traduz os nomes dos filmes, ovelhas existencialistas, pequenos funcionários, patrões terríveis, casais apaixonados. Define como psicótica a sua relação com eles. “Uma vez estava trabalhando: fiz o desenho a lápis, depois com o nanquim, depois com a aquarela. Quando passei o nanquim, soprei e uma gotícula de cuspe caiu sobre o desenho. E eu pedi perdão! Hum, pensei: acabo de pedir perdão a um desenho.”

Na verdade, o controle sobre os personagens não é mesmo absoluto. “Não sei exatamente aonde vão chegar. Os personagens vão-se acomodando, como uma novela que vai se descolando. É linda essa parte. Criar um universo que se pode visitar.”

A palavra em espanhol “macanudo” quer dizer excelente, extraordinário, magnífico. Também em português está registrada como poderoso, muito bom, de prestígio. “Basicamente sou um otimista. Adoro o que eu faço para trabalhar. Quando leio o jornal, ponho-me pessimista e negativo. Daí quero dizer à gente que não está tudo tão terrível. As manchetes são terríveis; mas a gente em volta de tudo é maravilhosa. Quero dizer: olha o que temos de interessante.” Na capa de Macanudo nº3 (lançado na Argentina em 2006), o escritor e desenhista argentino Roberto Fontanarrosa define assim o autor: “O estilo de Liniers é ingênuo, mas – cuidado, desprevenido viajante! –, é a ingenuidade ilusória do leão que devora uma gazela.”

Três preciosidades de Mauricio de Sousa


Há cinquenta anos, os personagens de Mauricio de Sousa já eram bem conhecidos do público, pois suas tiras eram publicadas em mais de 300 jornais em todo Brasil. Também saiam em suplementos infantis como a  Folhinha, que o desenhista ajudou a criar em 1963 juntamente com a jornalista Lenita Miranda de Figueiredo, para a Folha de S.Paulo.

Antes porém, em 1960, eles ganharam as páginas de duas revistas de histórias em quadrinhos – Zaz Traz e Bidu –, lançadas pela Continental, editora capitaneada por Miguel Penteado e Jayme Cortez.

Mas, em 1965 as criações do Pai da Mônica partiram para novos vôos. Foi neste ano que a Editora FTD lançou três livros infantis com diversos personagens do Mauricio. Era a estréia da turminha criada pelo desenhista num outro formato, que iria além dos quadrinhos. Piteco, Penadinho, Astronauta, Zé da Roça e Chico Bento foram os personagens escolhidos para essa nova empreitada.

Além deles,  Niquinho, um personagem totalmente desconhecido hoje em dia, foi o protagonista da história A Caixa da Bondade, que deu nome a um dos livros. O surpreendente é que essa aventura foi desenhada com um traço completamente diferente do estilo de desenho de Mauricio de Sousa (como se pode ver na imagem ao lado).

Cada livro trazia duas historinhas. O já citado A Caixa da Bondade trouxe também uma aventura do Chico Bento. O Astronauta no Planeta dos Homens Sorvete veio acompanhado do Zé da Roça e o Dragão que Não Existia. Já o livro do Piteco veio também com a história do Penadinho Contra o Caçador de Cabeça.

Os livros tinham tratamento luxuoso para a época: capa dura, formato grande (18,6 x 27,7cm) e 68 páginas. Cada página tinha uma grande ilustração e um pequeno texto. A história do Penadinho era um pouco diferente, com textinhos na página da direita e desenhões na esquerda. Além disso, a maioria desses desenhos tinha balões, como nos quadrinhos. 

Infelizmente esses livros são raríssimos e não são facilmente encontrados, mesmo nos melhores sebos. Mas isso promete mudar em setembro. A WMF Martins Fontes vai lançar, num único volume, as seis histórias clássicas, recuperando preciosidades que estavam perdidas no tempo. É um belo presente para Mauricio de Sousa, que faz 80 anos em outubro, e também para seus leitores e admiradores. Pequenos ou grandes.

O livro trará um extra bem bacana: uma entrevista com o criador da Turma da Mônica realizada por Sidney Gusman, responsável pelo planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções.

Sem dúvida, uma boa notícia para os leitores de todas as idades que curtem o trabalho de Mauricio de Sousa e, especialmente, para aqueles que o acompanham desde a década de 50.

Henfil maravilha!


Por Paulo Chico

O fato de que os cartunistas têm como esporte predileto as críticas ácidas e bem-humoradas ao poder não é uma novidade. O inédito, no caso do mineiro Henfil, é que nunca se vivenciara a experiência de um artista que, munido de seus traços finos e metralhadora de grosso calibre,
conseguiu exercer tamanha influência direta sobre os rumos políticos do País. Nos mais diversos veículos, Henfil incumbiu seus personagens de apontar os desmandos de um Brasil que sobrevivia sob regime ditatorial. E de lançar luzes sobre as mazelas cotidianas de um povo acuado. Ele combateu a ditadura, abraçou a campanha da anistia, criou o slogan das Diretas Já e fez a primeira passeata pública desse movimento com um pequeno grupo de cartunistas. Era um artista multimídia: Henfil fez humor em jornais, revistas, na televisão, no teatro e no cinema.

Apuro técnico
Mestre na arte do desenho, o chargista Chico Caruso, de O Globo, reconhece a importância do caráter político que permeia toda a obra do colega, mas destaca especialmente o apuro técnico de suas criações.

“O maior legado do Henfil é seu desenho. Mais precisamente, o movimento que seus traços sugeriam, algo difícil de se reproduzir numa folha de papel. Ele conseguia imprimir movimento em algo estático. Além disso, brilhava na questão da agilidade, da perspicácia, da rapidez do ataque através do humor. Apenas a sua participação no Pasquim já bastaria para colocá-lo entre os generais na batalha pela redemocratização do País”, diz Chico, que considera que atualmente falta ousadia aos grandes jornais. “É preciso abrir mais espaço e valorizar as imagens, não só as manifestações por meio do desenho, mas também as fotos”, sugere.

A mesma visão de mercado é apresentada por Ota. “O espaço para desenho está reduzido, até os quadrinhos estão encolhendo, com reproduções miudinhas. Há vários motivos para isso, desde a redução dos jornais, pelo alto custo do papel, e até o perfil dos editores, que não gostam dessa manifestação. O Henfil tinha lugar, pois conseguiu traduzir, em poucos traços, o que a população queria dizer. Histórias impagáveis, como as do Zeferino, duraram anos e anos, tendo só três personagens principais. Ele sintetizava em desenhos o que as pessoas não podiam falar em voz alta”, afirma o cartunista e quadrinista.

À frente do seu tempo
A questão seguinte, então, torna-se inevitável. Será que haveria espaço para personagens como Orelhão, Bode Orelana, Graúna, Cabôco Mamadô, Urubu, Ubaldo e os Fradinhos nas publicações atuais?

“Ah, acredito que ele teria grande dificuldade de se colocar hoje em dia no mercado. Na verdade, nós que militávamos contra os militares acreditávamos que com a abertura poderíamos arrebentar a boca do balão, produzir muito para os jornais. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Com o início da redemocratização, eles foram, aos poucos, dispensando seus desenhistas. Diziam não precisar mais da gente”, avalia Nilson Azevedo, cartunista e quadrinista de Belo Horizonte, que nos anos 70 chegou a dividir um apartamento com Henfil em São Paulo.

“Como sempre, Henfil conseguia se antecipar aos movimentos e tendências. Foi assim que em 1979 se mudou do Rio para São Paulo, onde, segundo ele, todas as coisas importantes, do ponto de vista cultural e político, estavam acontecendo. Ele tinha como referências o Lula, o ABC, Dom Paulo Evaristo Arns… Foi para dividir um apartamento com o Glauco lá na Rua Itacolomi, em Higienópolis. Logo depois, me convenceu a também ir para lá”, recorda Nilson, que conta uma experiência assustadora daquela época.

“Certa vez, a uma da madrugada, subíamos de carro pela Avenida Angélica eu, Henfil, Angeli, Glauco e Tárik de Souza. Fomos parados pela Rota e, após 20 minutos de terror psicológico, com oito armas apontadas para as nossas cabeças, fomos liberados, veja só, com a chegada de policiais civis, que pegaram mais leve com a gente… Naquela noite, achei que a gente ia dançar…”. O episódio vem à tona para descrever peculiaridades da personalidade do cartunista.

“Era impressionante sua coragem. Nesta noite, ficamos todos apavorados. E o Henfil, que era o verdadeiro alvo deles, ficou lá, firme, sem sombra de medo. Ele era uma verdadeira usina de produção, de força. Era capaz de, mesmo doente, hemofílico, colaborar com o Pasquim, produzir para a IstoÉ, fazer o TV Mulher, desenhar para o Jornal da República e para quem mais aparecesse”, diz Nilson, que destaca ainda a rara inteligência do amigo.

“Ele era uma das pessoas mais inteligentes que já vi. Um grande observador. E poderia dizer que ele vivia sob uma espécie de ódio sagrado. Ao mesmo tempo que exibia grande agressividade, era capaz de doses absurdas de compaixão, cultivava as amizades, tinha uma capacidade absoluta de entrega. E era muito divertido, irônico”, descreve Nilson, que hoje, também afastado dos grandes jornais, desenha para causas sociais e sindicatos de Minas Gerais. Ele acrescenta: “Henfil era mesmo uma espécie de farol, alguém que indicava caminhos a serem seguidos. E que influenciou de forma determinante a política da época”.

Prova dessa interferência do artista na política foi a campanha da anistia, iniciada em São Paulo de forma quase solitária por Therezinha Zerbini, sob o nome de Movimento Feminino de Anistia, e que ganhou projeção somente a partir da adesão do cartunista. “A campanha da anistia ganhou força mesmo com as Cartas da Mãe, que o Henfil escrevia para Dona Maria, com viés social e político. Elas foram publicadas na Revista do Fradim, no Pasquim e na IstoÉ. Aí, sim, o País tomou real conhecimento de que havia 10 mil brasileiros exilados, e aquele se tornou um movimento nacional”, lembra Nilson.

Trajetória de sucessos
Henfil nasceu no dia 5 de fevereiro de 1944 na cidade de Ribeirão das Neves. Fez sua estréia profissional em 1964, na revista Alterosa, onde surgiu a dupla de personagens mais conhecida do artista: os Fradinhos. No ano seguinte, passou a colaborar com o jornal Diário de Minas. Em 1968, mudou-se para o Rio e passou a trabalhar no Jornal dos Sports, onde reinventou termos esportivos e criou as figuras dos mascotes das principais torcidas de futebol do Rio de Janeiro. Em seguida trabalhou no Jornal do Brasil, no Pasquim e nas revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro.
Uma produção tão rica e diversificada que, é claro, deixou marcas em toda uma geração de desenhistas.

“O Henfil nos influenciou mesmo. Falo do grupo que se reunia sempre com ele, não tanto da geração em termos de idade. Ele revolucionou o cartum com seu estilo gráfico e com seu modo de trabalho. Na verdade, eu sentia que éramos da mesma geração. Havia uma outra, mais velha, que era a do pessoal do Pasquim, nossos mestres. Mas o Henfil era mais um colega pra mim. Esse era um diferencial. Não sei se ele era um gênio. Costumamos usar esse termo quando existe algo de inexplicável no modo como a pessoa cria seu trabalho. Isso, em alguma medida, existiu no Henfil, que realmente tinha assombrosa performance produtiva. Mas também em vários outros humoristas brasileiros”, diz o cartunista Laerte.

Jornalista e amigo pessoal de Henfil, Tárik de Souza não vacila um segundo ao definir a principal característica da rica obra do cartunista. “O principal traço de seu trabalho era, exatamente, o traço. Revolucionário, porque era econômico e urgente. Ele conseguia desenhar com uma velocidade impressionante. Vale dizer que um de seus principais personagens, a Graúna, é pouco mais do que um ponto de exclamação”, recorda o crítico musical do extinto Jornal do Brasil. “Mas, olhando em volta, o traço mais marcante da sua obra é o seu amor incondicional pelo País, que ele defendia com a mesma fúria com que atacava as suas mazelas”, pondera.

Ainda no aspecto profissional, Tárik conta que sempre se impressionou com a desenvoltura com que Henfil transitava pelos mais variados meios de comunicação e manifestações artísticas. “Também são características dele a versatilidade e a abrangência de seu talento, já que, além dos cartuns e dos quadrinhos, enveredou pelo teatro, com a Revista do Henfil, pelo cinema, com o filme Tanga – Deu no New York Times, pela tv, com a sua TV-Homem, dentro do programa TV Mulher, na Globo, além de livros Diário de um Cucaracha e Henfil na China. Fez até alguma coisa de música na trilha de peças”, relata o crítico de mpb.

“Pessoalmente, o Henfil cultivava os seus amigos com a mesma intensidade com que os cutucava. Gostava de provocar e fazer as pessoas pensarem e repensarem suas atitudes e posições. Por conta da doença crônica era hiperativo e trabalhava com afinco”, descreve Tárik de Souza, que, além da amizade, dividiu com o Henfil a criação de um de seus mais famosos personagens. “Há tempos queríamos criar um personagem, já que eu também sou fanático por quadrinhos. Numa viagem para Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, num fim de semana, surgiu a idéia e o nome do personagem, que refletia o nível de paranóia em que se vivia na época da ditadura militar. Nascia, assim, Ubaldo, O Paranóico” (abaixo).

O prazer de criar um personagem em parceria com o amigo, no entanto, sofreu forte abalo diante de mais uma atrocidade cometida pelo regime, uma das que tiveram maior repercussão dentre as muitas execuções daquela época. “Quando nós voltamos de viagem e compramos os jornais, soubemos que o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que trabalhava na TV Cultura na
época, tinha sido assassinado nos porões da ditadura, que depois tentou forjar um suicídio inverossímil. Com isso, o nosso personagem ganhou ainda mais força”, conta Tárik de Souza.

Henfil faleceu no dia 4 de janeiro de 1988 após contrair o vírus da aids numa transfusão de sangue, procedimento ao qual era regularmente submetido, em razão da hemofilia. A doença crônica também comprometia a saúde de seus dois irmãos – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o músico Chico Mário.

(Trechos de reportagem publicada originalmente em março de 2009 no Jornal da ABI)

 

O Macanudo supimpa chega a SãoPaulo


Demorou (e muito), mas finalmente aconteceu! Depois de receber mais de 80 mil pessoas no Rio de Janeiro, Recife e Brasilia, chegou a vez de São Paulo conhecer de perto o traço macanudo de Liniers. A tão esperada exposição Macanudismo, com originais de um dos mais representativos quadrinistas e artistas gráficos da Argentina já pode ser apreciada desde o dia 4 de julho no Centro Cultural Correios.

Macanudismo apresenta uma notável coleção de 500 tiras selecionadas entre as mais de 4mil publicadas, além de artes originais de contos gráficos, capas de livros e pinturas. Mas, para compensar a demora, a exposição de São Paulo recebe dois trabalhos nunca antes exibidos: uma entrevista ilustrada em quadrinhos com o ator Ricardo Darín (veja no fim desta postagem) e duas sequências do livro Los Sábados Son Como un Globo Rojo.
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Foram três anos de espera desde que esta exposição estreou no Rio de Janeiro, e dois anos, se considerarmos sua passagem por Brasília, a última cidade a receber esta mostra antes da Capital paulista. Segundo a curadora e idealizadora do evento, Bebel Abreu, a exposição não chegou antes a São Paulo por conta do patrocínio. “Ela é financiada através de editais públicos, e São Paulo é muito concorrido. Imagino que tenha sido por isso que ficamos como suplentes na Caixa e também nos Correios. Mas fomos aprovados no edital dos Correios em Brasília, e o êxito da exposição por lá resultou num convite para realizar a mostra também em São Paulo”, explica Bebel.

Mas o êxito da exposição não aconteceu só em Brasília. Por todas as cidades por onde passou, Macanudismo tem sido um sucesso. E em São Paulo não está sendo diferente. Só no dia de abertura quase mil pessoas estiveram no evento. 981, para ser exato. Nos primeiros 10 dias foram mais de 4 mil visitantes. Bebel comemora mais esse sucesso. Uma história que começou em 2009, quando ela foi montar em Buenos Aires a exposição de Pierre Mendell e acabou conhecendo esta, do Liniers, que acontecia na capital Argentina. “Me apaixonei! Queria muito que meus amigos e os brasileiros em geral vissem aquele mar de tiras originais em aquarela. Logo que falei com Liniers desse interesse, não acreditou muito, mas eu insisti e ele se animou.”

Hoje Liniers se diverte com o sucesso em terras tupiniquins. “No meu sonho mais dourado, o máximo que eu imaginava alcançar com minha arte, seria cruzar o rio da Prata e chegar ao Uruguai! Fiquei supercontente!”
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E existe a possibilidade de Macanudismo chegar em outras cidades brasileiras? Bebel acha que é possível. “Fomos contatados em Porto Alegre, e vamos inscrever a exposição ainda nos editais deste ano, mas por enquanto não tem nada certo”. A mostra, cuja realização foi de responsabilidade da Mandacaru Design, fica em São Paulo até o dia 1º de setembro.

A Zarabatana aproveitou o evento para lançar o oitavo livro da série Macanudo, com tarde de autógrafos no dia da abertura da exposição. Liniers autografou centenas de livros fazendo desenhos em cada um deles (veja no álbum de fotos abaixo).

Além da exposição, as pessoas interessadas em quadrinhos podem participar de oficinas e palestras de quadrinistas brasileiros. No dia 25 de julho, Laerte irá falar sobre o ofício do cartunista com a mediação de Gustavo Duarte, quadrinista autor de , Taxi, Monstros!Birds. Haverá também mais duas oficinas: uma com Gustavo Duarte no dia 8 de agosto, e outra com o cartunista Adão Iturrusgarai, no dia 23 de agosto. Um dia antes, porém, Adão irá contar como cria seus personagens e as situações em que eles vivem e falará com o público também de suas experiências como quadrinista. Veja a programação completa dos eventos paralelos, AQUI.

Para mais informações, você pode visitar o site da exposição. Para saber mais sobre Liniers, CLIQUE AQUI.

Veja abaixo um painel com fotos do dia de abertura da exposição Macanudismo, no Centro Cultural Correios. Clique nas imagens para ver as fotos bem maiores.