Uma imersão afetiva e social num ambiente inóspito

Por Rita Braga

Um dos fundamentos da antropologia é manter o olhar ativo como um pêndulo entre o exótico e o familiar. Assim também, literatura e arte, de modo geral, têm suas raízes entre o subjetivo e o universal. Os quadrinhos de A Narradora das Neves – Uma Aventura no País Inuit (La Conteuse des Glaces – Une Aventure en Pays Inuit) brinda o público com uma experiência mais do que agradável.

Os autores, os roteiristas franceses Caroline Roque e Bertrand Escaich – que assinam suas obras sob o pseudônimo de Béka –, já foram premiados por outros trabalhos com o mesmo cunho de imersão cultural, e também lançaram O Apanhador de Nuvens – Uma Aventura no País Dogon (Le Crochet à Nuages – Une Aventure au Pays Dogon) e A Crianças da Sombra – Uma Aventura no País Miao (Les Enfants de l’Ombre – Une Aventure en Pays Miao), todos lançados no Brasil pela Editora Nemo.

Como mais um exemplo da complexidade desse universo tantas vezes subestimado por educadores e leitores, A Narradora das Neves pode desdobrar-se em inúmeras leituras que confrontam culturas em várias instâncias.

No contexto brasileiro é possível que o primeiro estranhamento venha a partir do termo “Inuit”. Entre nós, no uso relativamente cotidiano ou mesmo no senso comum, ainda vigora a palavra “esquimó” para distinguir esse que é um dos povos aborígenes da região do Canadá, nas proximidades do Alasca.

Além do cuidadoso desenho do francês Marko (pseudônimo de Marc Armspach) que já nos convida a uma viagem à parte, na qual as nuances e cores conduzem o olhar sensível pela paisagem, a narrativa em si é uma imersão em outro ethos, outra organização política, afetiva e social. Vale lembrar que a história se passa num dos ambientes mais inóspitos do planeta e ao ver como as personagens se resolvem a cada passo ou palavra, o leitor tem alguns flashes de como a tecnologia, as regras sociais e até a percepção dos eventos mais triviais assumem singularidade.
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O enredo é simples e singelo. Após a experiência de ouvir um viajante que trazia as histórias de outros clãs, a jovem Buniq desafia seu avô – o velho Unioq que naquele momento se preparava para a morte – a acompanhá-la em uma última aventura; ela também quer ser uma contadora de histórias, mas para isso precisará provar que já pode ser responsável pela transmissão dos saberes, dos acontecimentos e símbolos que marcam essas comunidades tão distantes. Na leitura atenta descobrimos temas existenciais sob a perspectiva dentro daquele grupo: como nascer, como crescer, o que é se apaixonar e até o mistério de acreditar em algo ou de simplesmente reconhecer quais são os verdadeiros limites da vida naquele mundo de gelo.

Se é preciso apurar o olhar para enxergar a diversidade de tons e texturas da neve, o livro de Béka e Marko também nos oferece um ponto pouco conhecido de referência cultural que nos orienta e localiza no mundo.

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Caroline Roque nasceu em 1975 em Perpinhã (em francês Perpignan e em catalão Perpinyà), região ao Sul da França que recebeu a distinção de Capital da Cultura Catalã em 2008.  Bertrand Escaich nasceu em 1973 em Saint-Girons, região também ao Sul da França. Ele já escrevia roteiros para quadrinhos quando Caroline venceu um concurso de arte em Toulouse com um de seus romances. Ela, que fazia doutorado em Biologia, abandonou a área para se dedicar exclusivamente à sua verdadeira paixão. Caroline e Bertrand (ou Bertrand e Caroline = Béka) criaram juntos várias séries e já ultrapassaram um milhão de exemplares vendidos.

Marko nasceu em 1969 em Bordeaux e é um desenhista premiado em vários salões de artes e festivais de banda desenhada (Histórias em Quadrinhos) na Europa.

Rita Braga é graduada em Letras pela USP, pós-graduada em Sociopsicologia pela Fesp-SP e especializada em Jornalismo Literário pela ABJL. Com base em sua longa experiência no Núcleo Educativo do Museu da Língua Portuguesa e em outros espaços culturais, atualmente desenvolve uma pesquisa sobre Ações Educativas Sobre Língua Portuguesa na Educação Não Formal. Mantém o blog Notícias da Gaveta.

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