Henfil maravilha!


Por Paulo Chico

O fato de que os cartunistas têm como esporte predileto as críticas ácidas e bem-humoradas ao poder não é uma novidade. O inédito, no caso do mineiro Henfil, é que nunca se vivenciara a experiência de um artista que, munido de seus traços finos e metralhadora de grosso calibre,
conseguiu exercer tamanha influência direta sobre os rumos políticos do País. Nos mais diversos veículos, Henfil incumbiu seus personagens de apontar os desmandos de um Brasil que sobrevivia sob regime ditatorial. E de lançar luzes sobre as mazelas cotidianas de um povo acuado. Ele combateu a ditadura, abraçou a campanha da anistia, criou o slogan das Diretas Já e fez a primeira passeata pública desse movimento com um pequeno grupo de cartunistas. Era um artista multimídia: Henfil fez humor em jornais, revistas, na televisão, no teatro e no cinema.

Apuro técnico
Mestre na arte do desenho, o chargista Chico Caruso, de O Globo, reconhece a importância do caráter político que permeia toda a obra do colega, mas destaca especialmente o apuro técnico de suas criações.

“O maior legado do Henfil é seu desenho. Mais precisamente, o movimento que seus traços sugeriam, algo difícil de se reproduzir numa folha de papel. Ele conseguia imprimir movimento em algo estático. Além disso, brilhava na questão da agilidade, da perspicácia, da rapidez do ataque através do humor. Apenas a sua participação no Pasquim já bastaria para colocá-lo entre os generais na batalha pela redemocratização do País”, diz Chico, que considera que atualmente falta ousadia aos grandes jornais. “É preciso abrir mais espaço e valorizar as imagens, não só as manifestações por meio do desenho, mas também as fotos”, sugere.

A mesma visão de mercado é apresentada por Ota. “O espaço para desenho está reduzido, até os quadrinhos estão encolhendo, com reproduções miudinhas. Há vários motivos para isso, desde a redução dos jornais, pelo alto custo do papel, e até o perfil dos editores, que não gostam dessa manifestação. O Henfil tinha lugar, pois conseguiu traduzir, em poucos traços, o que a população queria dizer. Histórias impagáveis, como as do Zeferino, duraram anos e anos, tendo só três personagens principais. Ele sintetizava em desenhos o que as pessoas não podiam falar em voz alta”, afirma o cartunista e quadrinista.

À frente do seu tempo
A questão seguinte, então, torna-se inevitável. Será que haveria espaço para personagens como Orelhão, Bode Orelana, Graúna, Cabôco Mamadô, Urubu, Ubaldo e os Fradinhos nas publicações atuais?

“Ah, acredito que ele teria grande dificuldade de se colocar hoje em dia no mercado. Na verdade, nós que militávamos contra os militares acreditávamos que com a abertura poderíamos arrebentar a boca do balão, produzir muito para os jornais. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Com o início da redemocratização, eles foram, aos poucos, dispensando seus desenhistas. Diziam não precisar mais da gente”, avalia Nilson Azevedo, cartunista e quadrinista de Belo Horizonte, que nos anos 70 chegou a dividir um apartamento com Henfil em São Paulo.

“Como sempre, Henfil conseguia se antecipar aos movimentos e tendências. Foi assim que em 1979 se mudou do Rio para São Paulo, onde, segundo ele, todas as coisas importantes, do ponto de vista cultural e político, estavam acontecendo. Ele tinha como referências o Lula, o ABC, Dom Paulo Evaristo Arns… Foi para dividir um apartamento com o Glauco lá na Rua Itacolomi, em Higienópolis. Logo depois, me convenceu a também ir para lá”, recorda Nilson, que conta uma experiência assustadora daquela época.

“Certa vez, a uma da madrugada, subíamos de carro pela Avenida Angélica eu, Henfil, Angeli, Glauco e Tárik de Souza. Fomos parados pela Rota e, após 20 minutos de terror psicológico, com oito armas apontadas para as nossas cabeças, fomos liberados, veja só, com a chegada de policiais civis, que pegaram mais leve com a gente… Naquela noite, achei que a gente ia dançar…”. O episódio vem à tona para descrever peculiaridades da personalidade do cartunista.

“Era impressionante sua coragem. Nesta noite, ficamos todos apavorados. E o Henfil, que era o verdadeiro alvo deles, ficou lá, firme, sem sombra de medo. Ele era uma verdadeira usina de produção, de força. Era capaz de, mesmo doente, hemofílico, colaborar com o Pasquim, produzir para a IstoÉ, fazer o TV Mulher, desenhar para o Jornal da República e para quem mais aparecesse”, diz Nilson, que destaca ainda a rara inteligência do amigo.

“Ele era uma das pessoas mais inteligentes que já vi. Um grande observador. E poderia dizer que ele vivia sob uma espécie de ódio sagrado. Ao mesmo tempo que exibia grande agressividade, era capaz de doses absurdas de compaixão, cultivava as amizades, tinha uma capacidade absoluta de entrega. E era muito divertido, irônico”, descreve Nilson, que hoje, também afastado dos grandes jornais, desenha para causas sociais e sindicatos de Minas Gerais. Ele acrescenta: “Henfil era mesmo uma espécie de farol, alguém que indicava caminhos a serem seguidos. E que influenciou de forma determinante a política da época”.

Prova dessa interferência do artista na política foi a campanha da anistia, iniciada em São Paulo de forma quase solitária por Therezinha Zerbini, sob o nome de Movimento Feminino de Anistia, e que ganhou projeção somente a partir da adesão do cartunista. “A campanha da anistia ganhou força mesmo com as Cartas da Mãe, que o Henfil escrevia para Dona Maria, com viés social e político. Elas foram publicadas na Revista do Fradim, no Pasquim e na IstoÉ. Aí, sim, o País tomou real conhecimento de que havia 10 mil brasileiros exilados, e aquele se tornou um movimento nacional”, lembra Nilson.

Trajetória de sucessos
Henfil nasceu no dia 5 de fevereiro de 1944 na cidade de Ribeirão das Neves. Fez sua estréia profissional em 1964, na revista Alterosa, onde surgiu a dupla de personagens mais conhecida do artista: os Fradinhos. No ano seguinte, passou a colaborar com o jornal Diário de Minas. Em 1968, mudou-se para o Rio e passou a trabalhar no Jornal dos Sports, onde reinventou termos esportivos e criou as figuras dos mascotes das principais torcidas de futebol do Rio de Janeiro. Em seguida trabalhou no Jornal do Brasil, no Pasquim e nas revistas Realidade, Visão, Placar e O Cruzeiro.
Uma produção tão rica e diversificada que, é claro, deixou marcas em toda uma geração de desenhistas.

“O Henfil nos influenciou mesmo. Falo do grupo que se reunia sempre com ele, não tanto da geração em termos de idade. Ele revolucionou o cartum com seu estilo gráfico e com seu modo de trabalho. Na verdade, eu sentia que éramos da mesma geração. Havia uma outra, mais velha, que era a do pessoal do Pasquim, nossos mestres. Mas o Henfil era mais um colega pra mim. Esse era um diferencial. Não sei se ele era um gênio. Costumamos usar esse termo quando existe algo de inexplicável no modo como a pessoa cria seu trabalho. Isso, em alguma medida, existiu no Henfil, que realmente tinha assombrosa performance produtiva. Mas também em vários outros humoristas brasileiros”, diz o cartunista Laerte.

Jornalista e amigo pessoal de Henfil, Tárik de Souza não vacila um segundo ao definir a principal característica da rica obra do cartunista. “O principal traço de seu trabalho era, exatamente, o traço. Revolucionário, porque era econômico e urgente. Ele conseguia desenhar com uma velocidade impressionante. Vale dizer que um de seus principais personagens, a Graúna, é pouco mais do que um ponto de exclamação”, recorda o crítico musical do extinto Jornal do Brasil. “Mas, olhando em volta, o traço mais marcante da sua obra é o seu amor incondicional pelo País, que ele defendia com a mesma fúria com que atacava as suas mazelas”, pondera.

Ainda no aspecto profissional, Tárik conta que sempre se impressionou com a desenvoltura com que Henfil transitava pelos mais variados meios de comunicação e manifestações artísticas. “Também são características dele a versatilidade e a abrangência de seu talento, já que, além dos cartuns e dos quadrinhos, enveredou pelo teatro, com a Revista do Henfil, pelo cinema, com o filme Tanga – Deu no New York Times, pela tv, com a sua TV-Homem, dentro do programa TV Mulher, na Globo, além de livros Diário de um Cucaracha e Henfil na China. Fez até alguma coisa de música na trilha de peças”, relata o crítico de mpb.

“Pessoalmente, o Henfil cultivava os seus amigos com a mesma intensidade com que os cutucava. Gostava de provocar e fazer as pessoas pensarem e repensarem suas atitudes e posições. Por conta da doença crônica era hiperativo e trabalhava com afinco”, descreve Tárik de Souza, que, além da amizade, dividiu com o Henfil a criação de um de seus mais famosos personagens. “Há tempos queríamos criar um personagem, já que eu também sou fanático por quadrinhos. Numa viagem para Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, num fim de semana, surgiu a idéia e o nome do personagem, que refletia o nível de paranóia em que se vivia na época da ditadura militar. Nascia, assim, Ubaldo, O Paranóico” (abaixo).

O prazer de criar um personagem em parceria com o amigo, no entanto, sofreu forte abalo diante de mais uma atrocidade cometida pelo regime, uma das que tiveram maior repercussão dentre as muitas execuções daquela época. “Quando nós voltamos de viagem e compramos os jornais, soubemos que o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, que trabalhava na TV Cultura na
época, tinha sido assassinado nos porões da ditadura, que depois tentou forjar um suicídio inverossímil. Com isso, o nosso personagem ganhou ainda mais força”, conta Tárik de Souza.

Henfil faleceu no dia 4 de janeiro de 1988 após contrair o vírus da aids numa transfusão de sangue, procedimento ao qual era regularmente submetido, em razão da hemofilia. A doença crônica também comprometia a saúde de seus dois irmãos – o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e o músico Chico Mário.

(Trechos de reportagem publicada originalmente em março de 2009 no Jornal da ABI)